Desvendando a 'Prosperidade Comum': Como a Cultura Chinesa Influencia os Negócios na China
A 'Prosperidade Comum' na China: Uma Abordagem para Reduzir a Desigualdade
Contextualizando a iniciativa política liderada pelo presidente Xi Jinping
Dentre as diversas estratégias econômicas e políticas da China, uma delas se apresenta como ambiciosa e tem se transformado em medidas concretas através do presidente Xi Jinping. Anunciada no início da década de 2020, a "Prosperidade Comum" não é apenas um discurso, mas uma ação concreta que surge como resposta a sintomas de desigualdades econômicas.
Na dissertação de mestrado A retórica da ascensão pacífica na Política Externa da China: o legado de Mao Zedong no governo de Xi Jinping de Yasmin Lenz Piccoli Castelli (2023), o presidente no seu discurso na renovação de seu mandato em 2017, intitulado "Secure a Decisive Victory in Building a Moderately Prosperous Society in All Respects and Strive for the Great Success of Socialism with Chinese Characteristics for a New Era", já havia mencionado tal política, como um exemplo de continuidade da estratégia pacífica da China, com traços novos de um país que busca mais autonomia (p. 87).
No entanto, se por um lado a ideia de "Prosperidade Comum" está relacionada às metas de longo prazo e objetivos estratégicos do país, também há uma preocupação com a crescente lacuna entre ricos e pobres.
Wan Huiyao, do Centro para China e Globalização, de Pequim, em entrevista concedida em 2021 à BBC, inclusive, citou na época que a preocupação maior era com os trabalhadores medianos:
O Partido está agora preocupado com os trabalhadores medianos - como motoristas de táxi, trabalhadores migrantes e rapazes que fazem serviços de entregas, (...) A China quer evitar a sociedade polarizada que alguns países ocidentais têm, o que temos visto levar a desglobalização e nacionalização.
Outro grande estudioso sobre a China, o geógrafo Elias Jabbour, também discute o conceito de "Prosperidade Comum" em um vídeo publicado em seu canal.
Intitulado O que é a Prosperidade Comum chinesa?, Elias destaca que a ideia de prosperidade comum não é apenas retórica, mas uma palavra de ordem com raízes no socialismo. Um socialismo com características chinesas. Neste, a "Prosperidade Comum" seria associada à fartura camponesa e vista como uma expressão da relação direta entre socialismo e prosperidade.
Ele também segue a linha do que disse Yasmin, relacionando o conceito de "prosperidade comum" a um processo mais amplo de mudança e enfrentamento de desafios complexos, incluindo questões de segurança nacional e distribuição de renda.
Sobre questões de segurança nacional, Jabbour argumenta que o governo chinês enfrenta preocupações relacionadas principalmente a posse de dados pelas empresas privadas chinesas e a crescente influência dessas empresas, tanto dentro quanto fora do país. Essas preocupações, segundo ele, superam as questões relacionadas à distribuição de propriedade comum. Assim, a distribuição de renda e os desafios do desenvolvimento econômico nos últimos 40 anos na China têm levado o governo a buscar esquemas institucionais para lidar com essas questões.
Jabbour também enfatiza a importância do combate à corrupção como um meio de minar o poder dos bilionários na China. Ele segue argumentando próximo do que disse Wan Huiyao, que existe uma nova classe trabalhadora na China, composta por milhões de trabalhadores urbanizados, desempenhando um papel importante nas decisões progressistas do Partido Comunista Chinês.
Além disso, Jabbour menciona que a China está passando por uma reconstrução ideológica do Partido Comunista, com maior envolvimento da base. Ele destaca a mobilização de voluntários durante a pandemia de COVID-19 como um exemplo disso.
Muitas vezes compreender o que acontece na China não é tarefa fácil, nem para acadêmicos, pois os parâmetros utilizados são de sociedades que tiveram uma formação diferente, não apenas em termos de processo histórico, mas também relacionados aos diferentes sentidos simbólicos sobre diversos elementos que contém aquele contexto.
Nos estudos que venho fazendo para minha pesquisa de doutorado, não é incomum perceber na própria convivência com chineses, que noções específicas sobre a relação entre indivíduo e o grupo, se apresentam de forma diferenciada de uma noção ocidentalizada (ou adotadas por sociedades "inspiradas" nestas, como o Brasil), muitas das vezes centrada em uma noção de indivíduo dissociado do grupo.
A dificuldade de compreender um senso de coletividade que está muito mais associado a construção do Eu social do que a um coletivismo típico de comunidades não asiáticas, se transforma, muitas vezes, no estopim para análises enviesadas sobre os sentidos que estão por trás de decisões institucionais. Observar o Outro, pelos nossos parâmetros e sem considerar suas particularidades, é um erro fatal na tentativa de compreender diferentes culturas.
Compromissos de empresas como Alibaba, em promover a 'Prosperidade Comum'
Um dos exemplos que vem se destacando, quando falamos sobre a adoção da visão de "Prosperidade Comum", é o da gigante tecnológica Alibaba, que em 2021 fez um compromisso significativo ao anunciar um investimento de 100 bilhões de yuans, equivalente a cerca de US$ 15,5 bilhões, até 2025.
A Alibaba, inclusive, não se limitou a uma simples promessa financeira. A empresa também estabeleceu um fundo de desenvolvimento de "prosperidade comum" de 20 bilhões de yuans, direcionado para iniciativas como subsídios para pequenas e médias empresas e aprimoramento da proteção de seguro para trabalhadores, incluindo motoristas de aplicativos de transporte. Além de nomear um comitê de trabalho para impulsionar ainda mais essa missão de prosperidade, liderado pelo presidente e CEO Daniel Zhang.
Este compromisso não apenas demonstra o comprometimento da empresa com a causa, mas também alinha seus esforços com o objetivo do governo chinês de reduzir a desigualdade na segunda maior economia do mundo. Um resultado das políticas de governo, que apontou Elias Jabbour em seu vídeo.
As decisões práticas da Alibaba e sua abordagem abrangente não apenas complementam a visão do presidente Xi Jinping, mas também representam um exemplo notável de uma empresa privada contribuindo de forma significativa para abordar questões sociais críticas, como a desigualdade econômica. Este investimento não só beneficiará as pessoas na China, mas também destaca o papel fundamental que as empresas podem desempenhar na promoção da prosperidade e equidade em uma sociedade.
É preciso compreender que a ideia de "Prosperidade Comum" não é uma retórica. Não apenas pelo exemplo da Alibaba, mas também mediante uma compreensão de que o coletivismo chinês (ou asiático) parte de uma forma específica de compreender o Eu social, onde este Eu está associado ao Outro; diferentemente de um Eu social que se constrói em negação ao grupo, devido a inspirações individualistas; mesmo que, em termos sociológicos, ele também seja construído em grupo. A política pública surge como expressão dessa noção de indivíduo que depende do grupo para que o Eu exista. Obviamente que todo Estado impõe medidas de cima para baixo, mas encontra uma pré-disposição antropológica, o que permite seu sucesso.
Nesse sentido, o compromisso da Alibaba é emblemático. As empresas estão percebendo que, para prosperar a longo prazo na China, é necessário se alinhar com as prioridades da "Prosperidade Comum". Isso não apenas as mantém conforme as regulamentações em transformação, mas também as coloca em sintonia com elementos já característicos das relações sociais na China.
Mais uma vez, não dá para compreender a China como se esta tivesse sido formada com bases filosóficas ocidentais; eu até acredito que nenhum país asiático pode ser compreendido dessa forma, mesmo que alguns hoje se apresentem como extensões do ocidente.
A China é um país milenar e as filosofias tradicionais exercem grande influência nas suas práticas empresariais contemporâneas. O Confucionismo, uma das correntes filosóficas mais influentes, permeia as estruturas éticas e morais dos negócios chineses. Aqui, me refiro principalmente a questões que envolvem respeito às tradições, hierarquia, ética pessoal e responsabilidade social.
O Papel da Cultura Chinesa nos Negócios
O Confucionismo e sua influência na ética empresarial chinesa
Na dissertação de mestrado intitulada Estudio comparativo de las culturas de Gestión China y occidental, Wei Meng (2023, páginas 21 e 22), se dedica a fazer uma análise das diferenças entre a cultura empresarial chinesa e a cultura empresarial ocidental. O trabalho confirma que o confucionismo desempenha um papel importante na formação da cultura empresarial chinesa, enfatizando a importância da hierarquia, lealdade e ética nas interações entre as pessoas.
O autor também destaca que a cultura de gestão chinesa valoriza a hierarquia, lealdade e ética, o que pode ser atribuído à influência do confucionismo, mas também ressalta a falta de igualdade, democracia e disposição para assumir riscos como desvantagens em relação à cultura empresarial ocidental.
Sua análise, portanto, demonstra que a cultura empresarial chinesa, influenciada pelo confucionismo, é caracterizada por valores tradicionais sólidos, mas também enfrenta desafios em adaptar-se às demandas de um ambiente empresarial global em constante evolução. É nesse ponto que o olhar antropológico pode ajudar, pois relações empresariais em um mundo globalizado, requer uma compreensão mais aprofundada dos sentidos simbólicos acionados por comportamentos específicos de cada país.
É importante que não olhemos para similaridades e diferenças, sobretudo quando se trata de sociedades que em alguns elementos são tão distintas, com o olhar moralizante. Devemos compreender que estamos imersos em nosso contexto cultural, com valores próprios, regras específicas e noções particulares sobre comportamentos considerados ideais ou não. Quando observamos sociedades diferentes, precisamos levar em conta que os comportamentos considerados ideais, dependendo do contexto, podem ser diferentes.
Assim, no contexto empresarial chinês, o Confucionismo se traduz em valores essenciais que afetam a maneira como os negócios são conduzidos na China. A ênfase na harmonia, na busca pela excelência e na valorização das relações interpessoais são princípios fundamentais que guiam a conduta dos empresários chineses. Obviamente que isso não significa que as pessoas ficam recitando os Analectos de Confúcio no intervalo do trabalho. Quando falamos de valores confucionistas, a referência é a valores considerados ideais para aquela sociedade; muitas das vezes, imperceptíveis em termos filosóficos para o próprio nativo.
Para ter sucesso nos negócios na China, é essencial compreender e respeitar esses valores.
Perspectivas de brasileiros expatriados e o Guanxi.
Para além da compreensão dos valores citados acima, existe a questão do guanxi, um termo muito visto entre pesquisas que abordam o comportamento chinês.
Guanxi (关系), significa 'relação' ou 'relacionamento' em mandarim. Quando alguém pede desculpas e um chinês diz, mei guanxi (没关系), isso significa que não há relação. Em termos mais práticos de uso, pode, às vezes, ser utilizado como um "não foi nada", no português. Portanto, é preciso que a palavra não exerça uma função de fetichização, transformando um termo de uso às vezes semelhante ao nosso, em um evento ritualístico.
Por outro lado, estudar as diferenças nas relações entre chineses e estrangeiros, ou mesmo entre chineses, pressupõe compreender as particularidades que envolve determinada maneira de construir e manter relacionamentos. Sejam eles de amizade, amorosos ou comerciais; e não generalizar hábitos e formas de se relacionar que para a nossa cultura soa como algo muito natural.
O estudo intitulado A cultura chinesa nos negócios na percepção de brasileiros expatriados, conduzido por Laura Alves Scherer e Italo Fernando Minello (2015), fornece uma visão abrangente das percepções dos brasileiros expatriados em relação à cultura de negócios na China. O texto destaca elementos cruciais que afetam seus relacionamentos e interações profissionais, dentre eles, o guanxi.
O guanxi, segundo os autores, é definido como um sistema de relacionamentos baseado em confiança e reciprocidade, onde favores são trocados e esperados serem retribuídos no futuro. Eles ressaltam que muitos chineses tratam os estrangeiros como amigos, embora isso possa ser motivado por interesses próprios.
(...) a reflexão acerca do tema expatriação no que se refere à forma como o expatriado brasileiro percebe certos traços culturais dos chineses nos negócios, como por exemplo, relacionamento e confiança para se negociar – guanxi –, o senso de vergonha, a especialização das funções de trabalho, constatada a partir da perspectiva dos expatriados entrevistados, evidencia a necessidade de preparação do indivíduo a ser expatriado e de planejamento do processo de expatriação, visto que sua percepção afeta diretamente seu comportamento, suas relações pessoais com a família e amigos, seu desempenho enquanto profissional e, consequentemente, no resultado dos negócios (página 32).
Diversos fatores, como o senso de vergonha, a especialização das funções de trabalho e a hierarquia nas relações de negócios, estão associados ao guanxi; que, "em essência", é a forma dos chineses se relacionarem. Em toda sociedade (inclusive a nossa) há maneiras específicas de construir relações. Portanto, no caso dos chineses em específico, não há nada de extraordinário ou exótico.
Considerando a pesquisa em questão, esses fatores impactaram diretamente o comportamento dos expatriados, suas relações pessoais e seu desempenho profissional, com repercussões diretas nos resultados dos negócios. O que deixa claro que as relações entre diferenças culturais não são questões alegóricas. É preciso um olhar apurado sobre como lidar com as diferenças para que os relacionamentos ocorram sem dificuldades.
Compreender e respeitar a cultura chinesa é um componente vital para o sucesso nos negócios na China. O Confucionismo molda a ética empresarial, o guanxi constrói relacionamentos sólidos e o respeito pela hierarquia e autoridade influencia as negociações comerciais. Obviamente que a complexidade das relações sociais de um grupo é maior do que um post pode descrever, tampouco décadas de estudo podem formatar uma opinião definitiva sobre o comportamento social de um grupo. Porém, esses princípios culturais apresentados aqui, não apenas facilitam as transações comerciais, mas também ajudam a expor a importância de se fazer um estudo minucioso quando se quer construir relações entre culturas diferentes; sobretudo quando se trata de brasileiros e chineses. Todo empresário interessado em fazer negócios na China deve valorizar investir em conhecimento cultural antes de se arriscar em um negócio em outro país.
Conclusão
O estudo sobre a "Prosperidade Comum" na China e a análise da influência da cultura chinesa nos negócios revelam uma interconexão fundamental entre esses dois aspectos. Por um lado, a "Prosperidade Comum" busca atender às crescentes disparidades econômicas na China; por outro, a cultura chinesa desempenha um papel crucial na maneira como os negócios são conduzidos no país, o que faz do próprio conceito de "Prosperidade Comum", algo parte do contexto socio relacional chinês, para além da sua formalização como uma política de Estado.
Em termos objetivos, a iniciativa da "Prosperidade Comum" liderada pelo presidente Xi Jinping reflete o compromisso do governo chinês em reduzir a desigualdade e promover uma sociedade mais justa. Empresas como o Alibaba demonstram que o setor privado também está disposto a assumir a responsabilidade social, alinhando seus interesses com a visão do governo de compartilhar a prosperidade.
Pensar as relações comerciais nesses termos, oferece bons caminhos para empresários e investidores internacionais que desejam prosperar em um mercado complexo e dinâmico como é o mercado chinês.
O Confucionismo, com seus valores de respeito às tradições, hierarquia e ética, influencia a ética empresarial chinesa. O "guanxi", baseado em confiança e reciprocidade, desempenha um papel fundamental na construção de relacionamentos de negócios sólidos, enquanto a ênfase na hierarquia e na autoridade molda as negociações comerciais.
Por fim, para aqueles que desejam fazer negócios na China, a mensagem é clara: o conhecimento e o respeito pela cultura chinesa não são apenas importantes, mas essenciais. Buscar entender como a cultura chinesa permeia os negócios é a chave para estabelecer relações eficazes e bem-sucedidas.
Compreender o Outro, no entanto, não surge simplesmente da boa vontade, proatividade ou respeito. Esses são conceitos específicos a cada grupo social e o que pode ser respeitoso para um brasileiro, nem sempre tem o mesmo significado em outro contexto. Esse entendimento, quando orientado por um profissional, não apenas facilitará transações comerciais bem-sucedidas, mas também permitirá que empresas e empresários internacionais construam uma presença sólida e respeitada no mercado chinês, o que é inestimável em um mundo cada vez mais interconectado e globalizado.
Material citado:
A cultura Chinesa nos negócios na percepção de Brasileiros Expatriados (2015), por Laura Alves Scherer e Italo Fernando Minello (link).
A retórica da ascensão pacífica na Política Externa da China: o legado de Mao Zedong no governo de Xi Jinping (2023), de Yasmin Lenz Piccoli Castelli (link).
China's Alibaba to invest $15.5 billion for "common prosperity" (2021), de Brenda Goh, Yahoo Finance (link).
Estudio comparativo de las culturas de Gestión China y occidental (2023), de Wei Meng (link).
O que é a Prosperidade Comum chinesa? (vídeo) (2022) de Elias Jabbour (link).
'Prosperidade comum': a doutrina 'igualitária' que avança na China e impacta o mundo (2021), de BBC (link).
Nino Rhamos é doutorando em Antropologia e atualmente pesquisa o Cinema Étnico Chinês. Também se dedica a estudar a cultura chinesa para relações de negócios.
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