Existe polarização entre "identitarismo" e classe?
A discussão sobre "identitarismo" e classe é um tema recorrente no debate político e social contemporâneo. A polarização entre essas duas esferas é frequentemente apresentada como uma dicotomia, em que o "identitarismo" é visto como uma abordagem que enfatiza as questões de raça, etnia e gênero, enquanto a luta de classes foca nas relações econômicas e na distribuição de recursos.
No entanto, questões de identidade são intrínsecas às sociedades humanas, pois tudo é, em princípio, identitário. Ao marcarmos uma fronteira entre diferentes aspectos que compõem as sociedades humanas, surgem as identidades. O que muda é a forma de pensar como essas identidades se relacionam com outros aspectos sociais.
O identitarismo liberal, com sua ênfase na individualidade, é criticado por ignorar as relações sociais mais amplas e acreditar que soluções individuais podem resolver problemas sistêmicos. Por exemplo, a promoção de apenas uma pessoa indígena ou preta, enquanto todo um grupo de pessoas semelhantes continua vítima dos mecanismos excludentes impregnados na sociedade.
Por outro lado, existem abordagens coletivas que buscam intercalar dinâmicas identitárias com relações de classe, reconhecendo que a dinâmica de poder envolvendo "identidades" afeta outros aspectos das relações sociais, sobretudo as econômicas.
A questão envolvendo representatividade tem sua importância, claro, mas precisamos sempre nos perguntar o quanto uma representação disfarçada de ativo comercial transforma as relações sociais de forma contundente. Será que um corpo universitário diverso, transformado por políticas inclusivas, não é mais representativo do que um comercial de refrigerante ou de supermercado que usa essas pautas como uma espécie de "selo antirracista" ou um "selo feminista"? Como mensurar o impacto social real?
Claro que é importante que, por exemplo, uma criança preta possa se identificar com uma âncora de um jornal famoso; no entanto, há toda uma estrutura voltada para a não inclusão.
Certamente, uma âncora preta não muda o fato de que, provavelmente, seus diretores, os donos da emissora e o dono da empresa que paga o anúncio do seu telejornal são brancos; ao passo que, nessas mesmas empresas, provavelmente todo o corpo de funcionários de níveis mais baixos é preto. Ou seja, elas promovem facilmente a diversidade mudando o cargo de apenas uma pessoa, sempre aquela que constrói a imagem da empresa na sociedade, mas relutam em implementar medidas inclusivas internas que beneficiariam os funcionários de grupos marginalizados. Algo que não poderia ser utilizado como peça de propaganda.
A incapacidade do "identitarismo" liberal de transformar estruturas sociais, como as racistas, o preconceito contra pessoas LGBTQIA+ e mesmo de resolver de forma contundente a demarcação de terras indígenas, é uma contradição que precisa ser explorada nesses termos, em vez de se falar em "identitarismo" de forma generalizante.
Exigir políticas públicas inclusivas em instituições de Estado e fazer uma crítica contundente às grandes empresas e suas políticas internas excludentes, atinge muita gente de poder na sociedade. Isso expõe, por um lado, a dificuldade de um debate realmente transformador, pois são grupos influentes, inclusive em termos políticos, por outro, a facilidade da "solução identitária individualizante".
A "individualização" de questões envolvendo relações de poder entre identidades, facilmente pode ser implementado, constrói uma imagem social positiva de determinada instituição ou empresa, mas não contribui para uma transformação social, pois mantém inalteradas as dinâmicas de poder envolvendo os processos de acesso desses grupos aos recursos do Estado e dinâmicas econômicas mais amplas pensadas em termos de classe, respectivamente.
Essa breve reflexão que faço sugere que a verdadeira transformação social requer uma abordagem que reconheça a interconexão entre identidade e classe, e que políticas públicas eficazes devem abordar ambas as dimensões para promover a igualdade e a justiça social. A luta por uma sociedade mais equitativa não pode ser reduzida a uma questão de identidade ou classe isoladamente, mas deve envolver uma compreensão integrada de como essas forças operam conjuntamente no tecido social.
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