"Pé de Chinesa": Como a Inteligência Artificial e o Imaginário Popular Reforçam Estereótipos Culturais
Introdução
Recentemente, a internet foi inundada por um meme controverso chamado "Pé de Chinesa". Esta "novela fake", produzida com o auxílio de inteligência artificial, utiliza símbolos e referências da cultura chinesa de forma estereotipada, perpetuando visões preconceituosas. Embora o meme pareça, à primeira vista, uma simples brincadeira digital, uma análise mais detalhada revela como ele reflete e reforça um imaginário popular carregado de estereótipos negativos sobre a China. Este texto busca explorar um pouco como essas representações são moldadas tanto pela sociedade quanto pela IA, discutindo as implicações geopolíticas e culturais de tais práticas.
A "Pé de Chinesa": Contexto e Criação
A "Pé de Chinesa" é uma simulação de uma abertura de novela brasileira, criada para parecer uma produção genuína. Com uma trilha sonora, interpretada por Ney Matogrosso, tema de uma antiga produção da TV Globo, Negócio da China (2008), foi adicionada a uma animação que mistura elementos visuais produzidos por IA. O resultado foi um meme que faz uso de estereótipos visuais e auditivos para representar a China. O título, por exemplo, alude ao "Pé de Lótus", uma prática antiga na China, em que os pés das mulheres eram modificados para parecerem pequenos, considerados um ideal de beleza cruel e doloroso. A imagem do "Pé de Lótus" como símbolo da "novela" é uma escolha intencional que reflete um imaginário ocidental estereotipado e incompreensível sobre a cultura chinesa.
Além disso, é importante desmistificar a ideia de que memes como a "Pé de Chinesa" surgem espontaneamente do coletivo digital. Embora alguns memes possam ser criados de forma orgânica por internautas, muitos são estrategicamente produzidos para viralizar, seja como parte de campanhas publicitárias ou para reforçar posicionamentos políticos específicos. Essa percepção de que todos os memes são criações espontâneas da sociedade é enganosa e ignora o forte mecanismo de produção e intencionalidade que muitas vezes existe por trás deles.
Estereótipos e a Diferença entre Desconhecimento e Intenção
É essencial diferenciar entre um olhar homogeneizador — uma visão simplificada e generalizada sobre uma cultura, geralmente fruto de desconhecimento — e o uso intencional de estereótipos. Muitas vezes, representações superficiais ocorrem porque há pouco conhecimento ou exposição a uma cultura específica. No entanto, quando elementos estereotipados são acionados de forma deliberada, isso demonstra não apenas um conhecimento prévio, mas uma escolha consciente de explorar o que é conhecido como ofensivo ou redutor para gerar humor ou engajamento.
O "Pé de Chinesa", quando associado à música já conhecida, reforçando a redução cultural da China a elementos como o "pastel de flango", uma expressão que zomba da dificuldade de falantes de mandarim em pronunciar o som do "r" em português, e os "olhos puxados", uma característica frequentemente usada de forma pejorativa para descrever asiáticos, não reflete um simples desconhecimento. Ao contrário, é um exemplo claro de acionamento intencional de estereótipos, similar à algumas piadas feitas em stand-up e esquetes televisivas que intencionalmente zombam de características culturais para provocar risos.
A Inteligência Artificial e a Reafirmação de Preconceitos
A utilização da inteligência artificial para criar a "Pé de Chinesa" também levanta questões importantes sobre a maneira como essas tecnologias estão sendo treinadas. A IA, em si, não possui agência ou intenção; ela é um reflexo dos dados com os quais foi alimentada. Quando reproduz estereótipos, como os presentes no meme, não é porque "decidiu" fazê-lo, mas porque foi treinada com base em preconceitos que já existem na sociedade. Essa percepção de que a IA atua de forma independente é problemática, pois ignora o papel das empresas que a desenvolvem e programam. A responsabilidade pelo conteúdo gerado por IA recai sobre essas entidades, que devem ser conscientes e críticas sobre o que seus produtos reproduzem.
Geopolítica, Racialização e Percepção Pública da China
A representação da China na "Pé de Chinesa" também se insere em uma dinâmica geopolítica mais ampla, onde a China é frequentemente retratada como o "Outro estranho", ou reduzida a elementos estéticos que fazem alusão a um tradicionalismo vazio, por ser uma espécie de colab de estéticas desconexas das diversas manifestações étnicas que compõem a sociedade chinesa. Isso acontece mesmo que o meme não tenha apresentado essa dinâmica global de forma expressiva, pois se insere em uma narrativa especifica sobre a China. Diferente de outras culturas asiáticas, como a japonesa ou a sul-coreana — que foram glamorizadas por suas exportações culturais como animes ou doramas e, apesar do racismo contra asiaticos em geral, carregam uma proximidade com o ocidente no imaginário popular —, a China é frequentemente vista sob uma lente racializada e exotificada, marcada por elementos que enfatizam uma suposta "estranheza". Por outro lado, os norte-coreanos também são vistos de maneira estereotipada, diferente dos chineses, o que reforça ainda mais como esses olhares construídos no âmbito popular não são espontâneos, mas servem a uma dinâmica política global.
Essa percepção racializada da China não é um fenômeno novo, mas foi intensificada com o fortalecimento da extrema direita e a crescente polarização entre China e Estados Unidos, especialmente após a pandemia de COVID-19. O preconceito contra a China, portanto, não é apenas uma questão de ignorância cultural, mas também uma ferramenta geopolítica, usada para reforçar narrativas de superioridade cultural e política.
Reflexões Finais: Será que Compreendemos a Complexidade da Representação Cultural?
A "Pé de Chinesa" nos obriga a refletir sobre o papel que estereótipos e preconceitos desempenham na mídia digital e no imaginário popular. Não se trata apenas de um meme ou de uma piada inofensiva, mas de uma manifestação de como o preconceito pode ser normalizado e amplificado por novas tecnologias e práticas culturais. Diante disso, fica a pergunta: será que estamos realmente prontos para questionar e desconstruir as narrativas simplificadas e estereotipadas que moldam nossa percepção de outras culturas, ou continuaremos a rir dessas representações, ignorando o dano que causam? Principalmente porque a risada vem sempre daquele que oprime e não do oprimido. Se os papéis se inverterem, certamente a graça da piada desaparecerá.
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