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Segurança Alimentar na China, Desinformação e a Importância da Compreensão Cultural


Introdução


A China é um país enorme e como todo país com dimensões continentais, existe muita diversidade cultural, sobretudo quando lembramos que a figura "do chinês" (uma espécie de redução identitária de um país à figura de uma pessoa), como normalmente falam aqueles com impressões sobre o país (mesmo que tenham morado lá por muitos anos), na verdade, corresponde a um complexo cultural riquíssimo, com muitas diferenças que se expressão no idioma, fenótipos, vestimentas e, não podia faltar, hábitos alimentares.


Uma das maiores crueldades que aconteceram durante a pandemia do Covid-19, diz respeito justamente aos hábitos alimentares. Obviamente que em qualquer complexo cultural de um grupo, seja um país ou uma comunidade mais simples, diferenças alimentares são percebidas e algumas podem causar estranhamento; claro, porque não somos daquele contexto e não estamos habituados, ou melhor, não fomos socializados naquele contexto.


No entanto, o que foi feito com a imagem da China durante os anos de 2019 e 2022 (e se mantém na cabeça de alguns até os dias atuais), foi algo cruel e está muito mais atrelado a uma disputa de poder no contexto das relações internacionais, do que um simples "incômodo" esperado de quem se depara com hábitos culturais diferentes dos seus.


Enquanto a China sofreu preconceito e foi vítima de fake news relacionado à sua alimentação; a situação do mundo, quando se trata de insegurança alimentar, raramente desperta comoção.


Neste breve artigo, abordo um pouco sobre segurança alimentar na China, o impacto das notícias falsas sobre aspectos culturais e a importância da compreensão cultural para se promover boas relações.


Segurança alimentar na China

Segurança Alimentar. O mundo, o Brasil e a China: As Oito Tarefas Propostas

A segurança alimentar é uma questão crítica em todo o mundo e no Brasil. Segundo os dados recentes da Food Security Update | World Bank Response to Rising Food Insecurity, a inflação dos preços dos alimentos continua alta em diversas regiões do mundo, superior a 5% na maior parte dos países de baixa e média renda; alguns com taxas superiores a dois dígitos. Dentre as regiões mais afetadas, estão a América do Norte, América Latina, África, Sul da Ásia, Europa e Ásia Central.


Entre 166 países onde os dados disponíveis, a inflação dos preços dos alimentos excedeu a inflação geral em 80,1% e os índices de preços agrícolas, de exportação e de cereais, fecharam 6%, 4% e 10% mais altos, respectivamente.


No Brasil, um dos países mais desiguais do mundo, a questão alimentar influencia a sociedade em diversos aspectos. Além da questão objetiva, a falta de comida acessível para uma parcela importante, existe uma ideia de escassez, característica de uma sociedade que por décadas conviveu com uma parcela significativa de pobres que, por condição de existência, associam riqueza a ter comida na mesa.


Impactado por um governo que não soube lidar com as questões importantes durante a pandemia do Covid-19, o Brasil hoje busca se recuperar da situação deplorável que chegou em 2022.


Segundo os dados do Banco Mundial, a taxa de pobreza medida em US$ 6,85 por dia, diminuiu de 26,2% em 2019 para 18,7% em 2020, provavelmente graças à aprovação no congresso do programa de Auxílio Emergencial; mesmo assim, houve uma redução depois e os índices voltaram a subir para 28,4% em 2021.


Não à-toa o atual governo chama atenção para este aspecto cruel do nosso país e tem se esforçado para impor medidas de desenvolvimento econômico e distribuição de renda, para que o impacto possa fazer com que a vida da maioria dos brasileiros possa melhorar em termos de acesso à alimentação.


No contexto dos BRICS, a fome também tem sido motivo de debate, com a intenção de buscar soluções para que os países do Sul Global possam melhorar o acesso à alimentação de qualidade, por aqueles que mais necessitam; no entanto, é importante lembrar que de acordo com Food Security Update, não apenas os países do Sul sofrem com insegurança alimentar, a América do Norte e a Europa também fazem parte desse terrível dado.


Na China, recentemente foi apresentado à quinta sessão do Comitê Permanente da 14ª Assembleia Popular Nacional, a mais alta legislatura da China, um relatório sobre o trabalho para garantir a segurança alimentar nacional, afirmando que serão feitos esforços para implementar uma estratégia de uso sustentável das terras agrícolas, assim como a aplicação de tecnologias de agricultura para aumentar a produtividade.


Foi proposto oito tarefas para garantir a segurança alimentar no país, incluindo o fortalecimento do sistema de segurança alimentar e a construção de mais capacidade, o aumento do apoio à proteção agrícola e o aceleramento da construção de um sistema moderno para a indústria de alimentos.


É preciso lembrar que a China tem mais de um bilhão de pessoas e a questão alimentar, para além das questões concretas relacionadas ao acesso à alimentação impulsionada por investimentos nos setores produtivos, também têm uma grande importância para a cultura chinesa. O alimento está intimamente ligada ao processo de socialização e ao senso de coletivo.


A alimentação na China muitas das vezes é associada a uma questão familiar, de reunião com amigos, associada à prosperidade pessoal e a identidade de cada região. Inclusive, é comum se cumprimentar as pessoas perguntando se ela já comeu, convidar para uma refeição, assim como viajar para outras províncias e países para, além de tudo, conhecer novos pratos e sabores específicos da culinária local.



Xenofobia e Desinformação Durante a Pandemia de Covid-19

O impacto das fake news sobre a alimentação na China, viralizadas por atores importantes na geopolítica entre 2019 e 2022, não foram construídas despropositadamente. Por trás de todo aquele jogo de narrativas compartilhadas com o apoio de muitos meios de comunicação, havia o reforço de estereótipos de exotismo, estranhamento e perigo, sempre associados a povos que não estão no eixo dos países ocidentais.


Tudo isso fez com que durante a pandemia de Covid-19 o mundo testemunhasse uma enxurrada de desinformação e teorias da conspiração sobre o surgimento do vírus.


Devido a toda dinâmica geopolítica envolvendo o crescimento da China nas décadas anteriores, associada a essa atitude de sempre associar aos povos não ocidentais, a posição do "estranho" e "incivilizado", o surgimento do vírus, para além de todo impacto terrível que causou no mundo, foi usado como instrumento para se fazer uma política de destruição de imagens perante a opinião pública, que, pelo fato de não compreenderem o país e também operarem por um certo senso construído por matérias de jornais, filmes, etc.; afinal, todos se lembram da "gripe espanhola" ocorrida em 1918, vitimando cerca de 50 a 75 milhões de pessoas, aproximadamente 5% da população do planeta na época -, mas poucos se lembram de que ela não surgiu na Espanha. Na verdade, segundo alguns historiadores, a gripe espanhola começou no sul da França, onde as tropas americanas e inglesas estavam acampadas. Dali, os soldados americanos levaram o vírus para os Estados Unidos.


A disputa é pelo imaginário popular, que molda comportamentos e reforça posições políticas e interesses específicos de alguns atores. Como resultado, se reforça a desinformação sobre a cultura de outro país, incentiva-se a incompreensão e a intolerância ao Outro, ao "diferente", podendo, inclusive, ter resultados trágicos.


Dentre os ataques motivados por falas preconceituosas de pessoas com poder de comunicação, sejam governantes, reportagens jornalísticas ou influenciadores digitais, sempre associados à retórica que culpa as pessoas asiáticas pela disseminação da COVID-19, estavam incidentes de violência física, como pessoas sendo empurradas, esfaqueadas e até mesmo queimadas. Também foi registrado um aumento nos crimes de ódio contra pessoas de origem asiática.


Segundo o grupo de defesa Stop AAPI Hate, foram recebidos mais de 2.800 relatos de incidentes de ódio dirigidos a asiáticos americanos e ilhéus do Pacífico em todo o país no último ano.


Em Nova York foi criado uma força-tarefa de crimes de ódio, que investigou 27 incidentes em 2020, um aumento de nove vezes em relação ao ano anterior. Em Oakland, Califórnia, a polícia adicionou patrulhas e montou um posto de comando em Chinatown.


Chineses sofrem ataques e xenofobia

No contexto brasileiro não foi muito diferente. Ataques contra asiáticos associados à Covid-19, levou o Instituto Sociocultural Brasil China (Ibrachina) a lançar o Observatório do Coronavírus, diariamente atualizado com notícias sobre a pandemia, a fim de divulgar informações confiáveis, e combater as fake news. O instituto criou também uma central de denúncias, visando receber os relatos e encaminhá-las a autoridades para serem tomadas as medidas cabíveis contra o racismo. Infelizmente o racismo contra asiáticos no Brasil tem pouca importância entre pesquisadores e ativistas, o que ajudou a piorar muito a situação, principalmente durante o período auge da pandemia.


Na época, a fundadora do Pula Muralha, empresa de educação em língua e cultura chinesa, Si Liao, e seu co-fundador, Lucas Brand, constataram aumento de comentários ofensivos e racistas e promoveram, no Brasil, a campanha #EuNãoSouUmVírus, já iniciada em outras partes do mundo.



A Importância da Compreensão Cultural

Hoje o mundo tenta se recuperar daquele período triste. Dentre todos os terríveis resultados, sobretudo de vidas humanas, o impacto econômico acentuou a desigualdade no mundo e aqueles já em insegurança alimentar antes do vírus, tiveram suas vidas ainda mais prejudicadas.


O uso de desinformação como artifício político é um problema muito sério e precisa ser combatido. O impacto do vírus na economia de diversos países foi enorme e a intenção da desinformação, especificamente sobre a China, era induzir uma campanha popular "espontânea" contra o país.


Ter conhecimento cultural, desconstruir preconceitos e promover as boas relações entre Diferenças, faz parte de uma agenda proativa, daqueles que pretendem não apenas construir relações melhores, mas também querem que seus negócios prosperem em outro país.


A importância da cultura para se construir boas relações comerciais entre Brasil e China


Quando pensamos no que pode ajudar a promover os negócios internacionais, o conhecimento cultural é valioso. Ele evita mal-entendidos, desconstrói preconceitos e ajuda a adaptar estratégias de negócios ao mercado local. Nesse sentido, para se construir relações sólidas com pessoas de outras culturas, não basta boa vontade, uma compreensão que vai além do simples olhar comum, se torna uma arma valiosa para se construir boas relações, sobretudo as comerciais; por outro lado, a desinformação gera desconfiança, prejudica os negócios, promove xenofobia e incentiva violência.



Conclusão

Em um mundo onde a desinformação pode se espalhar rapidamente, é crucial valorizar a verdade e a compreensão cultural. Promover relações comerciais sólidas e positivas requer não apenas habilidades de negócios, mas também uma apreciação profunda das culturas envolvidas. O exemplo da China durante a pandemia nos lembra das consequências devastadoras que a xenofobia e a disseminação de notícias falsas podem ter em nossa sociedade.


A desinformação ainda ganha muito espaço nas redes, muito pelo seu caráter impactante e estimulante de julgamentos moralistas, sem nenhuma base informativa real. Muitas vezes, infelizmente, ainda é disseminado por portais de notícia que repercutem tais julgamentos, certamente com base em suas ideologias e na corrida por likes que opera de forma generalizada no ambiente virtual atual.


Na época da pandemia, todos se transformaram em especialistas em alimentação, disseminando informações sobre a China. Muitas vezes, vídeos de influencers chineses que fazem conteúdo gastronômico "bizarro" para internet, foram usados para naturalizar o comportamento alimentar de todo o país; não muito diferente do que sempre foi feito com a ideia de que os chineses, em geral, comem cachorros, baratas, etc.


É preciso compreender que alimentação considerada "estranha" vamos encontrar em qualquer lugar do mundo e assim como no Brasil, a China é enorme, tem muitas especificidades culturais e eventualmente, algum hábito alimentar causará repulsa. Isso é esperado e a repulsa não deve ser condenada como uma espécie de "moralismo às avessas". O problema é quando pegam algo que é muito específico, na maior parte das vezes abominado pela maioria do próprio país, e transforma no padrão, com o único objetivo de desinformar e reforçar o estereótipo de exotismo que há muitos anos é mantido sobre as populações asiáticas (não apenas aos chineses).


Podemos fazer um paralelo e imaginar, enquanto brasileiros, o impacto que seria se algo específico fosse disseminado no mundo a respeito de nossos hábitos comuns. Me refiro à prática do infanticídio, prática de algumas etnias brasileiras, que já foi motivo de muita polêmica no Brasil.


Por exemplo, entre os Ianomâmis, uma das maiores etnias indígenas do Brasil, as mães examinam a criança após o parto e, se ela tivesse alguma deficiência, a mãe volta sozinha para a aldeia. Prática que também era encontrada nos Suruwahas. As crianças com deficiência física, gêmeos, filhos de mãe solteira ou fruto de adultério poderiam ser vistas como amaldiçoadas, dependendo do grupo étnico, com isso, poderiam ser envenenados, enterradas ou abandonadas na mata. Agora faça o exercício imaginativo que grandes portais de notícias disseminassem que este seria um hábito comum do brasileiro. Infelizmente, mesmo que o mundo não tenha essa imagem do Brasil, portais de notícias nacionais lidam com essa questão de forma ainda muito problemática; na maior parte das vezes, assumindo o papel moralizante e pouco informativo, no sentido de não transmitir a ideia de que essa era uma prática cultural "ancestral" que vem sendo abandonada.


A preocupação da China com a segurança alimentar, demonstra o cuidado do país com a questão da alimentação. Porém, tais notícias não ganham o impacto nas redes sociais e nem mesmo nos portais de notícias mais tradicionais, pois o que gera cliques e lucro é o exotismo, a desinformação, o estímulo à repulsa; nos mesmos moldes que muitos indígenas ainda são tratados nas mesmas mídias.


Portanto, a questão não é defender a China. Mas sim compreender que a China é um país como qualquer outro, tem suas especificidades culturais, suas contradições e estão buscando lidar com elas, internamente, considerando os interesses dos diversos grupos sociais, caminhar em direção à acomodação das questões. Não é diferente do Brasil nem dos Estados Unidos, ou qualquer outro país da Europa ou da África, que têm seus problemas e questões que precisam ser resolvidas.


O problema é que a desinformação cria uma espécie de "estigma da exceção" sempre atribuída à vítima. Isso aconteceu aqui com pautas sérias envolvendo o debate de gênero, sobre questões indígenas, questões raciais, dentre outras, provocando na sociedade (especialmente em 2018) um clima de conflito onde um lado se viu na "missão" de destruir o outro, por pura crença que essa "exceção" (construída intencionalmente pelo mecanismo da desinformação) seria o grande mal do país. Mesmo que tensionamentos sejam considerados, quando se trata de disputas políticas envolvendo os diversos grupos de interesses que compõem qualquer país; há uma diferença grande entre a negociação de interesses (no sentido político) e uma guerra onde somente a eliminação do outro é apontado como resolução. O embrião do fascismo.


Compreender e respeitar a diversidade cultural tornou-se uma necessidade crucial para promover relações harmoniosas e bem-sucedidas, especialmente no contexto dos negócios internacionais.




Páginas consultadas:


ABC News. (2021, March 17). Tradition Leads Parents to Take Lives of Children with Physical Disabilities. https://g1.globo.com/fantastico/noticia/2014/12/tradicao-indigena-faz-pais-tirarem-vida-de-crianca-com-deficiencia-fisica.html

BBC News. (2021, February 22). Trump's "Chinese Virus" Tweet Helped Lead to Rise in Racist Attacks. https://www.bbc.com/news/world-us-canada-56218684

ComCiência. (n.d.). Pandemia Revela Outras Faces da Xenofobia. https://www.comciencia.br/pandemia-revela-outras-faces-da-xenofobia/

ReliefWeb. (2023, April 20). Food Security Update. https://reliefweb.int/report/world/food-security-update-april-20-2023

World Bank Group. Food Security | Rising Food Insecurity in 2023. https://www.worldbank.org/en/topic/agriculture/brief/food-security-update

World Economic Forum. (2023, August). Food Security: Hunger Global Challenge. https://www.weforum.org/agenda/2023/08/food-security-hunger-global/

Office of the United Nations High Commissioner for Human Rights. (n.d.). Public Communication File. https://spcommreports.ohchr.org/TMResultsBase/DownLoadPublicCommunicationFile?gId=25476

YouTube. (n.d.). [Video] - Link do primeiro vídeo. https://www.youtube.com/watch?v=Z_t1Ia1qYBM

YouTube. (n.d.). [Video] - Link do segundo vídeo. https://www.youtube.com/watch?app=desktop&v=eQCU6M9PB0M

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